18/10/2009
por Jorge Loeffler
Em 1965, com vinte e um anos, decidi submeter-me a um concurso público, ingressando na então Escola de Polícia. Enfrentei o curso de formação de Inspetores e Escrivães. Aquela foi uma das melhores, senão a melhor turma da Escola. Lembro de alguns colegas de curso como do Joaci Casagrande Paulo, hoje psiquiatra, do Jorge Anselmo Barrios, Procurador da República aposentado, do Julio Cezar Coitinho, Juiz de Direito aposentado, do Luiz Carlos Celi Garcia, hoje cirurgião plástico bem sucedido em Caxias do Sul, do Arnaldo Buede Sleimon, desembargador em nosso TJ ainda em atividade, do Edemar Mainardi, engenheiro ferroviário aposentado.
Belíssima turma. Havia muitos outros que foram muito bem sucedidos e cujos nomes no momento não recordo, pois nossa turma era composta de cerca de 150 alunos Terminado o curso, em meados de 1966, fui lotado na Delegacia de Polícia de Bom Jesus. Meu único irmão consangüíneo, o Henrique que trabalhava na REFAP, refinaria da Petrobrás em Canoas, foi removido para a refinaria de Araucária no Paraná que estava por inaugurar. Nossos pais já com 60 anos, o que na época era considerado velhice, ficaram sozinhos. Tínhamos um vizinho, Escrivão de Polícia e redator no Correio do Povo. Seu nome Luiz Carlos Costa, já falecido e que se aposentou como Delegado de Polícia.
O Costa, um excelente vizinho, e por sua condição de jornalista conseguiu junto a então Chefia de Polícia meu retorno à Capital, mas a lotação conseguida seria no DOPS. Não me restou alternativa. Ali me apresentei dia primeiro de agosto de 1966 e permaneci até o final daquele ano. Fui lotado no plantão.
Havia lá uma escala de sobreaviso, ou seja, durante a folga ficávamos sempre a disposição para eventual substituição de algum colega. Pois no dia 13 daquele mês, no final da tarde, fui buscado em casa tendo em vista que o Escrivão de Polícia Laurentino Scomazzon adoecera. Mal havia chegado lá chegou o Delegado Enir Barcelos da Silva, irmão de um oficial do Exército e que se comportava com se fosse militar. Mandão como ele só.
Chegara ele trazendo um jovem casal. Eram namorados. Reconheci a ele como sendo vizinho no meu bairro, era o Edgar Pernau, filho do senhor Henrique Pernau, gerente de Lojas Renner. O crime do Edgar e sua acompanhante fora ter participado de um leve acidente com danos matérias com a viatura discreta usada pelo Delegado Enir. Tão somente por isto foram conduzidos ao plantão do DOPS.
Meu Deus o que ocorrera neste país para chegarmos a tamanha barbaridade? Enquanto os dois ali estavam, um colega lotado há mais tempo naquele Departamento trouxe da cela um sujeito de altura média, com feições típicas de nordestino. Ele trajava uma calça de nycron preta, sapatos sociais pretos, camisa volta ao mundo, branca, com as mangas arregaçadas, Sob um dos braços tinha uma caixa de sapatos com objetos de higiene e outros pessoais.
Ele me pareceu nervoso. Em poucos momentos foi liberado e recebi de um veterano a ordem de não me aproximar da janela. Descumpri tal determinação e vi que o preso cuja identidade ainda não conhecia, depois de sair da porta lateral do prédio (Avenida Ipiranga), rumou até a Rua da Azenha e então tomou o rumo do centro, mas ainda sobre a ponte da Azenha foi apanhado por dois homens que trajavam gabardines e colocado num automóvel Renault Gordini.
Depois fiquei sabendo que sua soltura fora registrada em livro próprio como tendo ocorrido ao meio dia. Não mais o vi. Na noite do dia 23, ou seja, dez dias depois surgiu a notícia de que haviam encontrado corpo de um preso político boiando no Guaíba. No dia seguinte, ou seja, 24 de agosto fomos, eu e o Régis ao antigo necrotério (fundos da Santa Casa). Lá chegando reconheci o cadáver como sendo daquele preso liberado ao anoitecer do dia 13.
O colega que me acompanhou era o Dionísio Régis Torres Medeiros, Guarda Civil e cedido ao DOPS. Alguns dias depois nos encontramos na escada do prédio e ele feliz da vida me disse que iria para Rio Grande, se livrando daquilo ali. Ele fora campeão de pugilismo quando no Exército. Lembro ter dito a ele que tomasse cuidado, pois Rio Grande era um porto marítimo e, portanto sempre perigoso. Ali nos despedimos e ele disse-me que sabia se cuidar.
Alguns dias depois fiquei sabendo que no mesmo dia em que chegara a Rio Grande ele se envolveu numa briga no porto e o dono do bar o matou com um tiro na cabeça. Esta foi a versão do fato que chegou ao meu conhecimento, porém se verdadeira ou não, confesso que não sei. Naquele período negro e lamentável de nossa história recente morrer ou desaparecer não era algo tão difícil assim.
Uma coincidência me despertou a atenção. É que na manhã do dia 24 de agosto, algumas horas depois da “descoberta” do corpo no Guaíba, desembarcava de um ônibus na Rodoviária, a senhora Elizabete Chalupe Soares, esposa da vítima, vinda do Rio de Janeiro. Lembro quão difícil foi esta situação. Anos mais tarde um advogado desqualificado de nome Aldrovando de Oliveira Micelli decidiu escrever um livro no qual afirmava terem sido matadores do sargento os Comissários João Ribeiro e Jorge Pinto Loeffler.
Num determinado dia cheguei a Área Judiciária para trabalhar e um dos Escrivães que compunham nossa equipe me mostrou o Correio do Povo com a matéria sobre o tal livro. Aquelas 24 horas custaram muito a passar. No dia seguinte rumei cedo para Cidreira onde minha esposa e filhos, todos pequenos, me aguardavam. A Cíntia era a mais velha deles e tinha seis anos. Hoje ela tem 36 anos, logo isto ocorreu faz trinta anos.
Até mesmo foram à porta da casa do meu irmão em Curitiba perguntar para minha cunhada se o assassino era parente deles. Hoje tenho 65 anos e ainda não me considero velho o bastante, mas longe estou de ser jovem. Muito tenho refletido e sempre me lembro do Scomazzon que nem mesmo lá estava quando da saída da vítima e sempre constou como sendo um dos envolvidos nesta morte covarde. Até mesmo circularam as versões de que teria sido um “caldo”.
Conversa fiada, ele foi mesmo afogado, pois para o tal caldo não é necessário um rio inteiro. Versão infantil mesmo. Circulou naquela época o rumor de que ele havia sido morto para vingar uma surra aplicada por companheiros dele num major do Exército ligado a repressão. Ao lado da Delegacia de Polícia do Oitavo Distrito residia um sargento do Exército que chegou a major durante a repressão política, era o senhor Darci Paiva Soares. Seu filho, o Carlinhos acabou “trabalhando” no DOI-CODI por influência do pai e sempre contava suas façanhas, isto já anos depois, quando eu trabalhei no plantão daquele distrito.
Não sei onde anda o Scomazzon que fora meu vizinho na Chácara das Pedras. Lembro que tinha duas filhas. Sua esposa era professora e amiga da minha. Não sei se ele ainda vive. Espero que sim e que tome conhecimento deste meu desabafo que lhe faz justiça, pois além do sargento ele é outra vítima.
Sei que este texto poderá me causar algumas incompreensões, mas nesta quadra da vida, isto a mim pouco importa. Me importa sim que matar alguém por determinação e num regime ditatorial é algo inconcebível a alguém como eu que tive uma família que muito bem soube me educar.
Lembro do que o meu pai me contava sobre como enfrentou uma rejeição estúpida depois da guerra, tendo sido naturalizado ainda em 1927, pois foi considerado quinta coluna vez que mandava daqui, via Cruz Vermelha, para suas irmãs e sua cunhada café, açúcar e roupas. Meu tio que morreu faz alguns anos em Munique, era então prisioneiro dos ingleses em Bari, no sul da Itália, onde permaneceu até fins de 1947. Num salto foi atingido ainda no ar por fogo inglês e sofreu fratura numa das pernas. Tio Edmund acabou se familiarizando com aquela cidade e depois da guerra passou a veranear lá.
PS. A noite deste domingo, depois de ter encerrado este texto soube do telefone do Scomazzon e conversei com ele. Está com mais de setenta anos e bem de saúde.
Nenhum comentário:
Postar um comentário